terça-feira, 6 de junho de 2006

Sombras na noite

Não havia muitas pessoas ali. Era a continuação da vida na morte. Passara sempre sozinha e agora o que se via eram seus dois filhos, netos e o pastor. A filha dedicara todos os seus dias a cuidá-la, não tinha do que se arrepender, nem do que ter remorsos. O filho, a cara enxuta apesar dos olhos vermelhos, talvez fosse o único a carregar o peso do desleixo. Doze dias de cuidado não pagariam sua dívida.
O caixão de madeira nobre, a mortalha lilás e uma única rosa pousando no peito. O tecido tipo mosqueteiro cobria tudo e atenuava o horror que a morte significa. A sala era pequena, a capela mortuária do cemitério municipal, aquele em que se paga uma taxa irrisória a cada três anos, não passava de um cubículo feito de tijolos, com um reboco mal feito e pintura a cal.
Novembro é um mês quente e as moscas zumbiam ao redor das árvores do cemitério, incomodando a todos os presentes. Mas ninguém tinha coragem nem sequer para espantá-las. Oitenta e cinco anos, nada mal para uma mulher que viera do interior e passara a vida em sofrimento, filha de italianos, de uma época em que a cor da pele dizia tudo. Os cabelos brancos, após a loirisse invejável, a tez pálida. Não dava para dizer que estava morta. Somente o peito surdo o denunciava.
Cada um que se aproximava do caixão recebia o silêncio e o golpe dos olhos fechados. Mas além do momento fúnebre ninguém poderia negar que ela estava bonita, linda até. Em seu sono eterno encontrara, enfim, a paz. Porque o terror da morte só existe para os que ficam, que continuam essa vida até chegar sua vez, uns mais cedo, outros inexplicavelmente mais tarde.
No banco de pedra do lado de fora da capela as irmãs estavam sentadas. As três filhas da filha, não as três filhas do filho. Tinham passado a infância e a adolescência com a avó. Moraram juntas por doze anos. Os últimos dois mais longos que os demais. A cirrose e a esclerose tinham nebulado um pouco os anos felizes.
A mais velha segurava a mão da menor. Talvez fosse a mais alheia, enquanto a outra fosse a que mais sentisse tudo. A do meio indiferente, ou na melhor das hipóteses, conformada. Para elas não deixava de ser um alívio. Embora nenhuma reconhecesse em voz alta o pensamento em comum.
Aos poucos, outras pessoas iam chegando. As duas ex-empregadas-enfermeiras-faztudo não faltaram. Não se sabe bem porquê foram, afinal não tinham tido lá grandes momentos cuidando da doente, no pior da sua enfermidade. Um vizinho com a mulher, dois amigos, alguns conhecidos que nessas horas querem parecer solícitos, uma mulher do velório ao lado. Pois o cemitério dispunha de duas micro-capelas, uma ao lado da outra. O que poderia ser cômico se não fosse a ocasião.
Às cinco e meia da tarde o enterro deveria ser realizado. Desceram todos por uma baixada, rumo às gavetas. Túmulo no chão, aquela história de sete palmos abaixo da terra, só para os mais abastados dos mais pobres, afinal o cemitério era público. Para os realmente endinheirados uma fortuna garantia seu lugar no Cemitério Jardim. O nome até parece mais bonito, mas não passa de uma máscara para o que não deixará de ser um amontoado de ossos, após a carne ser comida por vermes. Bem dizem os antigos, ao nascer e ao morrer somos todos iguais, a diferença está entre uma coisa e outra.
Empurraram o caixão sobre dois pedaços de madeira, para facilitar o deslizamento. A coroa de flores, que jamais falta nos enterros, por mais simples que sejam, foi posta sobre o caixão, dentro da gaveta. Já que a interessada não poderia mesmo vê-la não havia motivos para que outros a vissem. A neta mais nova ameaçou chorar, a mãe a conteve. Sempre dissera que na morte da mãe dela não queria uma lágrima sequer, ninguém tinha o direito disso, pois não haviam dedicado suas vidas suficientemente à mulher para tê-lo.
Depois de tudo, a gaveta lacrada e os pormenores finalizados, por incrível que pareça, foram em direção à saída às gargalhadas. Quem passasse por aquele grupo não imaginaria que tinha saído de um enterro de um membro da família. Seja por nervosismo ou por falta de interesse o importante é que todos riam, contavam piadas e riam mais.
Quem viera de carro deu carona para quem viera de ônibus. Super lotação. Se alguém fosse barrado pelo serviço de trânsito, uma improbabilidade, visto que o mesmo não funciona como deveria, não seria só o problema da multa, uns quatro teriam que descer, devido ao excesso de passageiros. Porque todos os carros eram comuns, de passeio, duas portas, algumas ferrugens na lataria e pneus gastos.
Em casa a coisa mudou de figura. À noite, as irmãs se reuniram no quarto. A do meio, casada, passara a noite com as outras. A mais velha chorou, se abraçaram as três. Por que o choro agora? Não foi saudade, foi a visão dos vermes a comer a avó. Ao dormir, sonhos desconexos.
Às três da manhã, abriu os olhos. Na escuridão não divisava bem os móveis, nem encontrava o interruptor para acender a luz. Mas sabia onde estava. Foi até o banheiro, como de costume. Onde estava o sanitário? De repente sentiu o calor da urina descendo pelas pernas. De novo. Era sempre a mesma coisa. Mas desta vez não chamaria ninguém. Não agüentava mais a vergonha. A barriga inchada doía. Um chá de bugre, como a mãe havia ensinado, poderia ajudar. Foi até a cozinha. Nessa ida lembrou que já era hora de fazer o almoço. Procurou as panelas. No escuro ficava difícil. Tateou pelas paredes até encontrar o interruptor de luz. Apertou. A luz não acendeu. Deveria ter faltado, isso é normal por aqui. Empresa estatal.
Bem, já que não poderia encontrar as panelas foi ver como estavam todos. Sentia-se tão sozinha, com um pouco de frio. Ao entrar nos quartos constatou que dormiam. Mas não divisava bem quem era quem naquele mar de camas. Voltou até a cozinha. Uma fome lhe assaltou. Foi à geladeira. Um pedaço de frango, mesmo gelado, poderia bastar. Mas lembrou-se que o médico havia dito que carne fazia mal, aziras. Tacou os dentes. Só tinha os de cima. Lembrava-se de quando usara dentadura. Não havia sido muito agradável. Ao olhar para o grande relógio branco da parede as horas não apareciam. Mas não era mais a escuridão, seus olhos já estavam acostumados com ela. Eram os números. Não existiam.
Foi sentar-se, mas um chamado urgente a assustou. Foi até a porta. Sim, era seu nome que chamavam. Abriu-a e saiu para a grande varanda. Os pés estavam descalços, mas ela não se deu conta. Aquele chamado parecia realmente urgente. Um carro estava parado em frente ao portão. Grades altas ladeavam a casa. O cadeado estava aberto. Saiu em direção ao carro. Era branco. Um homem, vestido de chofer, o dirigia. Ele olhou para ela e sorriu. E aquele sorriso bastou para fazê-la entrar no carro. Ao sentar no banco de trás, viu que tudo era branco. Os assentos, as paredes. Somente o motorista e sua roupa eram negros. Um chofer negro. Não era racista, mas não gostava muito de negros. Sua mãe havia dito que eram filhos de bugres, índios canibais. Mas aquele lhe inspirava confiança. Somente quando partiram, sem ela saber o destino, foi que notou sua camisola lilás. Parecia uma mortalha.
Às três da manhã, abriu os olhos. O pijama rosa estava ensopado de suor. Os cabelos grudados no pescoço. O sonho, ou pesadelo, tinha sido horrível. Levantou-se e foi até a cozinha. Ao se aproximar da geladeira, viu que estava aberta, o pedaço de frango caído no chão, já o medo tinha paralisado seu corpo e só restava gritar.

Nenhum comentário: