sábado, 19 de novembro de 2005

Reunião de família

Sou uma privilegiada. Tenho um pai que depois dos cinqüenta anos colocou na mesa, para a família toda, gostem ou não, que ele tem um sonho. Não é todo mundo que tem um pai assim, que não se prende ao apelo do sistema de que nessa idade o melhor a fazer é vestir pijama de flanela, calçar chinelos felpudos e ficar em frente à TV ou lendo jornal o dia todo.
Aliás, o que mais me surpreendeu em sua declaração foi realmente o fato de que ele reuniu toda a família para fazê-la. Após uma pizza para encher os estômagos da turba, o ar ficou um pouco denso depois que todos constataram que ele, o pai, arrumava as cadeira de forma a conseguir, ou tentar conseguir, algo parecido a um círculo. Então, o silêncio.
Havia tempo que não nos reuníamos assim. Meus pais sempre foram de consultar os filhos, desde que me conheço por gente. Nem sempre éramos ouvidos, mas estávamos ali e isso deveria bastar. Mas nesse tempo não passávamos de crianças mimadas (o que em verdade, não mudou muito). Essa reunião foi solicitada com antecedência. Todos, filhos, nora, genros e netos avisados com tempo suficiente para cancelarem qualquer outro compromisso.
Não vou esquecer a cara que cada um fez depois que meu pai começou a falar. Havia desde dúvida, temor, até hilaridade. Havia até cara de susto, afinal não deixou de passar por nossas mentes que ele poderia nos dizer que estava com uma doença grave, incurável e que, inevitavelmente, iria morrer em breve. Qual nada! Ele queria avisar a todos, com o suspense que a ocasião merecia, que tem um sonho e que, apesar de desejar realizá-lo, queria a opinião da família a respeito. As alternativas? Ou correria atrás do sonho ou vestiria pijama de flanela.
Não deu outra. A opinião foi unânime: trate de seguir o sonho. E eu falo mais: persiga o sonho, lute por ele, nem que seja apenas para continuar sonhando. Se há riscos? Ora, não há futuro sem riscos. Só deixa de correr riscos quem não vive mais e viver também no sentido figurado. O que eu gostaria de ter dito naquela reunião e que não disse, como sempre, é que se o sonho vale a pena, se o risco é menor do que a satisfação de sonhar, então não pense duas vezes.
Ele conseguiu algo maravilhoso naquela noite, na “reunião”, conseguiu se fazer entender, a partir do momento em que tocou na realidade de cada um de nós, que também temos sonhos e queremos realizá-los, e antes disso queremos vê-los respeitados.
Para ele, meu pai, que talvez venha a ler essas linhas, deixo as palavras de Paulo Freire:
Sonhar não é apenas um ato político necessário, mas também uma conotação da forma histórico-social de estar sendo de mulheres e homens. Faz parte da natureza humana que, dentro da história, se acha em permanente processo de tornar-se. Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança. A compreensão da história como possibilidade e não determinismo seria ininteligível sem o sonho, assim como a concepção determinista se sente incompatível com ele e, por isso, o nega.
Por isso, sonhe, como tudo o que desejou, sonhe livremente porque faz parte do homem que aspira à vida e que anseia por uma mudança, pela possibilidade de fazer a história e não sou eu quem irá impedi-lo, pelo contrário, sempre o apoiarei.

Um comentário:

Anônimo disse...

Aí Ane hein? Tô gostando de ver-te e ler-te, essencialmente porque sou um grande fã de Paulo Freire - um dos maiores da educação brasileira. Tenho tentado ser freireano, em que pesem as dificuldades. Sugiro que leias 'Pedagogia da Indignação'. Ali há uma bela reflexão sobre a coerência no cristianismo. Essa instituição tem me decepcionado, ando me considerando um 'cristão sem igreja'. Té faço parte de uma comunidade no Orkut sobre o assunto.
Abraços,
Levi N.