Os monges em Laos |
É bom viajar, na verdade, é
ótimo viajar. Sair da rotina, conhecer novas culturas, sentir outros sabores,
ver outras gentes. Mas nem sempre estamos prontos para imergirmos em outras
formas de pensar e agir no mundo. Viajar supõe estar aberto a tudo o que se vai
experimentar sem que nossas ideias e concepções interfiram em nosso julgamento,
porém essa é uma tarefa árdua que exige disciplina intelectual ao longo de
algumas viagens, pois ninguém aprende a viajar sem viajar várias e várias
vezes.
Ao fim de uma viagem mais longa,
temos a sensação de não termos saído do lugar. Todas as descobertas recentes
levam um tempo para acomodarem-se em nossa mente e passarem a fazer parte de
nós. Quando voltamos para casa, é necessário um processo de auto-convencimento
de que, sim, nós estivemos em todos aqueles lugares que estão em nossa memória
da câmera fotográfica; que, sim, somos realmente nós que pisamos aquelas
terras, que saboreamos aquelas comidas, que estivemos com aquelas pessoas.
Quando voltamos, precisamos
rever nosso trajeto desde o momento em que começamos a planejar a viagem,
inclusive, para compreendermos se as motivações permanecem as mesmas e se as
expectativas que tínhamos foram alcançadas ou até mesmo superadas.
Criança da tribo catcat em Sapa, Vietnã |
Desde os 18 anos eu viajo. Fiz
minha primeira trip para Israel e Egito com três dias em Madrid. Eu fui
sozinha, sem nenhum familiar. Eu falava um inglês melhor do que hoje, eu tinha
vontades e maturidade diferentes. Eu nem sabia o que ia fazer da vida em
relação à profissão ou qualquer outra coisa, mas quando voltei essas questões
estavam respondidas e uma certeza eu tinha e nunca mais deixei de ter: eu ia
viajar muito.
Um tempo se passou, fiz minha
faculdade, iniciei minha carreira e casei, casei-me com um homem que havia prometido
a si mesmo que viajaria muito. E juntamos nossas vontades e temos viajado todos
os anos, cada vez mais longe, cada vez por mais tempo. Dessa vez, fomos a
alguns países do sudeste da Ásia, com nosso inglês básico, sem agência, sem
ninguém, a não ser o fruto de nossas pesquisas e muita dedicação em organizar
desde os voos, estadia, transporte nos locais, como se comportar, o que
esperar.
Tem gente que nos considera um
tanto loucos, mas estão errados. Somos totalmente loucos, um pelo outro, e cada
um pelo mundo e todo o conhecimento que ele tem para nos transmitir. Somos
doidos, cada um pelos seus próprios motivos, para descobrir o que há por trás
de outras moradias que não a nossa, outras culturas, que não a nossa, outros
olhares, que não os nossos. Somos muito malucos mesmo pela vontade de mudança,
pela desacomodação, pela insônia criativa das madrugadas que nos ajuda a pensar
e perceber que não somos nem o centro do universo, muito menos da comunidade
onde vivemos.
As montanhas de Sapa |
Escrevo esse texto durante o voo
de volta para casa. Serão 11 horas de voo, então tenho muito tempo para ler,
pensar, escrever e escrever sempre me ajuda a organizar as ideias e a analisar
cada uma delas. Então, não há como voltar de uma viagem da mesma forma quando
do embarque para o inesperado, porque o que vivemos é só nosso, é nossa
experiência e nossa mente passará a perceber tudo ao nosso redor de um outro
jeito, mesmo que não queiramos.
Durante esse tempo em que
estivemos fora, aprendi que a cultura tem um poder enorme sobre a vida das
pessoas. Somos realmente frutos de nosso meio. Somos criação do pensamento
dominante de nossa sociedade, e só quando nos empoderamos de uma consciência
profunda sobre nós mesmos é que podemos romper com o que consideramos não nos
fazer tão bem quanto pensávamos até então.
Senti falta de objetos banais,
como ter o auxílio de uma faca para as refeições, pois só nos ofereciam colher,
às vezes garfo. Senti falta de sal, e passei a odiar a pimenta. Não raras
vezes, desejei um vaso sanitário, pois na maior parte dos banheiros que
precisei usar só havia um buraco no chão. Também passei a dar preferência à
comida industrializada em muitos locais, era a única garantia de que não
passaria mal, ou tão mal, depois de comer e bebi muito refrigerante pelo mesmo
motivo.
Mercado Flutuante, Tailândia |
Isso tudo, principalmente no
início, porque houve momentos em que poder tomar um banho frio já foi
considerado um luxo, e poder contar com um sorriso de compreensão de uma pessoa
acostumada com a privação me fez sentir uma completa idiota ocidental. No começo,
tudo era novidade e as diferenças foram recebidas como a constatação de que o
que havíamos lido a respeito era realmente verdadeiro. Com os dias passando,
imergir nas comunidades, caminhar entre as gentes, tentar se fazer entender,
comer da sua comida e ficar feliz pelo prato quente de sopa de macarrão de
arroz e frango entre vários tipos de folhas desconhecidas era considerado um
privilégio.
Ficávamos conversando sobre o
podermos viajar, o termos a oportunidade que a maioria das pessoas de nossas relações
jamais terá, a bênção que era ver o que vimos e experimentar o que
experimentamos, mesmo quando não haviam outras alternativas. Sim, somos privilegiados,
mas não nos sentimos melhores do que ninguém por isso, nos sentimos pequenos
porque estamos podendo vivenciar outras realidades e perceber o quanto somos
egoístas em nossos desejos diários, o quanto somos mesquinhos em não dividirmos
nossos sentimentos, muitas vezes com receio do que os outros irão pensar.
Em uma viagem como a que
fizemos, receios devem ser todos deixados de lado, porque a gente tem que meter
a cara, tem que perguntar, tem que fazer muita mímica mesmo sendo ridícula, tem
que desenhar, literalmente, o que desejamos. Quando fazemos esse tipo de
viagem, classificada como exótica nas agências especializadas, temos que estar
abertos a todas as possibilidades de comunicação existentes ou corremos o risco
de ficarmos doentes, com fome e sem encontrarmos nossas hospedagens.
As ruas de Hanoi, Vietnã |
O que os quatro países do
sudeste da Ásia nos ensinaram talvez nem consiga ser externado por completo,
pois cada um de nós leva consigo suas impressões e aprendizagens de acordo com
sua visão e bagagem de mundo, porém há lições preciosas que podem ser nominadas
e a tolerância é a maior delas. Tolerar aos outros e suas diferenças, tolerar
as diversidades de nosso planeta, tolerar ideias e formas de ver o mundo
diferentes das nossas (mas nem por isso erradas), tolerar os infortúnios quando
esses não têm solução, tolerar as necessidades alheias (mesmo que
incompreensíveis a nós), tolerar os nossos próprios limites e sabermos parar quando
chega a hora de sentar, tirar os calçados e aliviar o peso dos ombros.
Quando a viagem termina,
terminam também muitas lembranças recentes, muitas sensações irão afundar na
realidade do cotidiano a ser enfrentado por cada um. Por isso, as fotos e os
relatos existem, para mantermos a memória do que realmente vale a pena ser
lembrado, para jamais deixar de ter sido aprendido e podermos olhar esses dias
com a sensação pura de que valeu a pena, valeu cada calo, cada dor no corpo,
cada chuva fria, cada nascer e pôr do sol assistidos, cada voz ouvida, cada
pimenta detestada, cada banheiro precário... Porque “tudo vale a pena quando a
alma não é pequena”, afirmou o luso poeta Fernando Pessoa e queira nós termos
sempre a grandeza de compreendermos a amplidão das gentes e todas as
possibilidades que temos de sermos melhores agentes nesse mundão de Deus.
Um comentário:
Gostei do texto e gosto mais ainda da ideia de ter por perto alguém com o coração e os olhos bem abertos para enxergar o mundo de uma forma real, necessária, justa... Beijos.
Estou te seguindo agora.
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